Fim de ano, muito trabalho, muitos problemas para resolver, então decidi abordar um tema mais ameno: etimologia. Quem nunca viu ou ouviu as
expressões “lar, doce lar”, “retornar ao lar”, “termos do contrato”, entre outras, nas quais as palavras lar e termo estão presentes? LAR
é uma palavra que evoca proteção, aconchego, família. TERMO traz a ideia de limite, marco divisório. A origem destas
palavras remonta ao antigo mundo religioso greco-romano.
No antigo culto aos mortos, possivelmente uma evolução do
totemismo primitivo(a)(b),
os antepassados da família eram considerados deuses. Consistia tal culto,
basicamente, em manter e cuidar do local de descanso final do parente falecido
(a sepultura), no qual eram oferecidas libações, proferidas fórmulas sagradas
e, em contrapartida, o deus familiar proporcionava saúde, fartura e proteção.
Cabia ao chefe da família – o primogênito do sexo masculino – zelar pela manutenção
do culto para, quando viesse a falecer e tornar-se ele também um deus, o seu
filho desse continuidade aos ritos religiosos.
Como a família, por meio da religião, vinculava-se fortemente aos
antepassados que “habitavam” a propriedade (pois ali estavam eles enterrados),
era praticamente impossível as pessoas mudarem-se para outro local, pois se
isso acontecesse (por exemplo, fossem feitos escravos), o culto cessaria (já
que não havia como levar os deuses para outro lugar), e cessando o culto extinguia-se
a família, resultando, assim, que não haveria quem desse continuidade às
fórmulas sagradas, acarretando que os deuses não mais teriam quem os cultuasse
e ficariam, assim, vagando desamparados(c).
Os LARES eram, pois, os
deuses protetores das famílias, os seus antepassados. Inicialmente cultuados em
sua sepultura, mais tarde sua presença passou a ser marcada por um altar(d) na entrada de cada
habitação, cujo fogo sagrado deveria permanecer sempre aceso. Vejamos o que diz
COULANGES (referência 2) sobre o lar: “O
fogo do lar era, pois, a Providência da família. Seu culto era de fato bem
simples. (...) exigia-se manter continuamente sobre o altar alguns carvões
acesos porque, extinguindo-se o fogo, deixava de existir o deus.”
Conforme a sociedade foi crescendo, sentiu-se a necessidade de
delimitarem-se espaços. E assim surgiram os deuses TERMOS, que eram os guardiões dos limites das propriedades. Podiam
ser representados por uma grande pedra ou árvore que marcava o fim da
propriedade, e a partir de onde deveria ser respeitado um certo espaço entre
uma propriedade e outra limítrofe, pois as duas não poderiam tocar-se, tendo em
vista que cada uma possuía deuses (lares e termos) diferentes e,
consequentemente, religiões diferentes.
Os deuses termos eram sempre muito respeitados, e também a eles –
como aos lares – eram oferecidas libações. E quem ousasse remover um deus termo
de seu local sagrado podia ser acusado de crime de impiedade. Também em relação
ao termo, COULANGES (referência 2) tem algo a dizer-nos: “Uma vez o termo colocado segundo os ritos, não havia poder no mundo
capaz de deslocá-lo. Devia ficar para sempre no mesmo lugar. (...) O deus termo
guardava, de fato, os limites do campo, vigiando-o.” Este mesmo autor, ao
citar uma lei etrusca, dá-nos uma ideia da seriedade com que o assunto era
tratado: “Aquele que tocar ou deslocar o
marco, será condenado pelos deuses; sua casa desaparecerá e sua raça se
extinguirá; a sua terra não produzirá mais frutos; o granizo, a ferrugem, e os
calores da canícula(e)
destruirão suas colheitas; os membros do
culposo cobrir-se-ão de úlceras e cairão por consumpção(f).”
E assim, através dos séculos, chegaram-nos estas duas palavras. O LAR, que era o deus familiar
(representado mais tarde pelo altar do fogo sagrado), converteu-se no local de
moradia da família (abandonou-se o altar, mas manteve-se a ideia de local de
reunião dos membros da família, local de proteção e de aconchego). E dos TERMOS, que eram os guardiões dos
limites da propriedade, chegou-nos essa ideia de marco estabelecido, de limite
a ser respeitado, a tal ponto do Direito fazer uso, por bom tempo, do brocardo
“pacta sunt servanda” (os contratos
devem ser cumpridos)(g).
Notas:
(a) HAINCHELIN (referência 4), ao tratar do tema [“O totemismo, culto dos animais ou das
plantas, ligado à crença num parentesco entre o grupo humano e seu totem (...).
Enterra-se o cadáver do totem com muitas cerimônias, costume que pode persistir
inclusive quando (...) o totemismo já não existe: é o que sucedia com o lobo em
Atenas (...).”] nos traz uma imagem muito similar do culto aos
antepassados: o culto aos mortos, a crença no poder do parentesco, as
cerimônias fúnebres, etc.
(b) Em CAMPBELL (referência 1) [“A vida animal é inteiramente transformada em vida humana, por meio da
morte (...). O enigma do totem (a curiosa imagem dual, ao mesmo tempo animal e
humana, da qual tanto o clã quanto as espécies animais do mesmo nome são
considerados originários (...)) é perfeitamente interpretado por essa fórmula.”]
temos também uma descrição muito próxima do culto aos antepassados: a morte
como evento transformador de homem em deus (de animal em homem, no totemismo), a
imagem dual humano/divino, etc.
(c) Talvez, nos dias atuais, pudéssemos chamá-los “almas penadas”.
(d) Este altar era chamado, na Grécia, de “bõmos”, “oschara” ou “héstia” (que mais tarde deu origem ao
nome da deusa Vesta); já os latinos o chamavam “vestae”, “ara” ou “focus”.
(e) Canícula: período do ano em que Canícula (a estrela Sírio)
encontra-se em conjunção com o Sol, no início de agosto, coincidindo com os
grandes calores de verão (p.ext. calor muito forte) – Dic. Eletr. Houaiss,
2001.
(f) Consumpção: ato ou efeito de gastar-se até a destruição. Definhamento
progressivo por doença – Dic. Eletr. Houaiss, 2001.
(g) O brocardo ainda é válido, mas não com a mesma força de antes.
Referências:
(1) CAMPBELL, Joseph. As
máscaras de Deus: mitologia primitiva. Palas Athena, 2005.
(2) COULANGES, Fustel de. A
cidade antiga. Martin Claret, 2002.
(3) DONINI, Ambrogio. Breve
história das religiões. Civilização Brasileira, 1965.
(4) HAINCHELIN, Charles. As
origens da religião. Fulgor, 1963.
(5) HACQUARD, Georges. Dicionário da mitologia grega e romana. Hachette, 1996.
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