20 de dezembro de 2012

EVOLUÇÃO, BARALHOS E DIÁLOGOS


Estava eu, tranquilamente, a tomar banho para ir trabalhar, quando o pensamento voou solto e lembrei-me da Evolução e do baralho. E já que o mundo acaba amanhã, dia 21 de dezembro, é melhor eu escrever algo o mais rápido possível enquanto ainda tenho tempo... vai que acaba mesmo, não é?

Eu gosto de alguns jogos de cartas (gostei muito de ter aprendido as regras básicas do “Texas Hold’em Poker”, desgostei de ter desaprendido as regras do “Truco”, e às vezes eu jogo em família um pouquinho de “Buraco” e “Sueca”). Tais jogos têm regras bem definidas, ainda que com umas e outras variações (por exemplo, quanto ao jogo de “Buraco”, há versões “abertas” – pode-se ver as cartas da mesa – e “fechadas” – não se pode ver tais cartas; há versões nas quais, a partir de certa pontuação, fica-se “vulnerável”, ou seja, só podem ser baixadas na mesa sequências de determinado valor; etc). Os fundamentos dos jogos, porém, quando aprendidos, são válidos para praticamente todas as versões.

E nesse passeio mental, lembrei-me da Teoria da Evolução. Ao falar em Evolução vêm-nos logo à mente o nome de Charles Darwin (1809-1882). A ideia de evolução dos seres, porém, é muito mais antiga(a), podendo mesmo recuar tão longe quanto Aristóteles. O próprio Darwin foi herdeiro das ideias de seu avô, Erasmus Darwin (dentre outros), também naturalista, que já no seu tempo andava pelas sendas evolutivas. O que cabe a Charles Darwin – e com toda justiça – é o fato de ter transformado a mera teoria em uma Teoria Científica(b)(c) (e também com justiça devemos lembrar de Alfred Russel Wallace que, na mesma época, chegou – de forma independente – a resultados muito próximos aos de Darwin).

E assim, associando o baralho à Evolução, podemos perceber que, assim como os jogos de cartas possuem regras, também a Evolução possui regras: primeira, a REPRODUÇÃO, por meio da qual temos descendência; segunda, a VARIAÇÃO, na qual um descendente herdará certas características combinadas de seus genitores e, por meio dessa herança, sempre haverá uma certa variabilidade entre os indivíduos; terceira: a COMPETIÇÃO, por meio da qual os indivíduos competem por recursos naturais limitados.

Dessa forma, havendo limitação de recursos (por exemplo, alimentos) em certo nicho ecológico, aqueles indivíduos que tiverem herdado as melhores características adaptativas serão mais bem sucedidos na batalha pela vida. E a acumulação dessas heranças, no tempo, fará com que a nova população se diferencie da antiga a tal ponto que dará origem a uma nova espécie, a partir do momento em que não mais houver possibilidade de reprodução – com descendência fértil – entre elas. Essas são as linhas gerais da Evolução das Espécies.

E o diálogo, onde entra nesta história? Bom, o diálogo me veio à lembrança devido aos debates sobre ciência e religião dos quais tomei parte ou simplesmente presenciei neste imenso mundo digital. Normalmente polarizados entre evolucionistas versus criacionistas, algumas vezes mais pareciam monólogos, onde cada parte falava somente sobre o seu lado e  ignorava o outro. Isso acontece no “time evolutivo”? Sim, com certeza. Mas o que tenho observado é que acontece com muito mais frequência – e de forma muito mais marcante – no “time criacionista”.

É certo que, devido a este problema, há momentos em que o desânimo prevalece, visto que, para um diálogo produtivo – ou mesmo uma discussão (no sentido de troca de ideias, e não de conflito belicoso) – é necessário que as partes tenham o mínimo de boa vontade para, ao menos, tentar compreender os argumentos umas das outras, e perceber como tais argumentos são desenvolvidos.

Dialogar com certos criacionistas pode tornar-se, pois, uma tarefa ingrata, não só pelo fato deles não aceitarem argumentos evolucionistas (muitas vezes demonstrando nem ao menos conhecer os temas em questão, que é o mínimo esperado, visto incorrer em erros elementares, como por exemplo o já tão batido “se o homem veio do macaco, por que ainda existem macacos?”(d), entre outros(e)(f)), mas também pelo fato de que, ao arregimentarem para si “verdades” externas ao questionamento racional, já estão, a priori, deixando claro que não haverá diálogo.

Eles já têm a sua “verdade” e apenas desejam ver se outros argumentos podem ou não ser cabíveis nessa “verdade”. Se podem, ela os abarca; se não podem, são descartados (ainda que estejam conformes à natureza). É por isso que, muitas vezes, dialogar com criacionistas é como jogar cartas com uma pessoa que quer ter o baralho todo só para ela.

Notas:
(a) Conforme MAYR, “A Teoria de Darwin apenas forneceu um mecanismo para a evolução, não CRIOU a evolução.” (referência 6).
(b) Muitos confundem “teoria” – no sentido geral, senso comum – com “Teoria Científica”. Entretanto, para que uma determinada teoria possa ser considerada científica, há todo um método a ser seguido, há todo um rigor a ser observado: o cientista verifica um certo fato da natureza; na tentativa de explicar tal fato, elabora determinadas hipóteses, que são exaustivamente testadas, e aquela que passar pelos testes é publicada (publicação esta que deve conter a metodologia e os resultados aos quais o cientista chegou); após tal publicação, a hipótese será testada novamente, desta vez por outros cientistas independentes (aplicando-se a mesma metodologia, procuram chegar aos mesmos resultados); se a hipótese mantém-se incólume, poderá ser chamada de “Teoria Científica” (e assim permanecerá até que outra Teoria explique melhor aquele fato da natureza ou, por meio de novos estudos e testes, a Teoria venha a se mostrar incorreta, devendo ser descartada).
(c) Algumas pessoas costumam referir-se às Teorias Científicas como sendo “mera teoria”, ou sendo “somente uma teoria”, tendo em vista que elas não têm um caráter absoluto. Uma Teoria Científica nunca será absoluta (no sentido de explicação final e bastante da natureza), bem como nunca deixará de ser testada (podendo mesmo ser abandonada ou trocada por outra). Entretanto, ao utilizarem-se daqueles termos tais pessoas ignoram – e não sei se de má-fé ou não – todo o trabalho científico já realizado (vide nota anterior).
(d) Quanto a esta pseudo-questão do “se o homem veio do macaco, por que ainda existem macacos?” (considero pseudo-questão, visto que não existe tal postulado – vir o homem do macaco, ter o homem evoluído do macaco – em nenhuma obra evolucionista), eu acredito que um contra-questionamento totalmente válido seria perguntar à outra parte o seguinte: “SE O MEU TIO TEM UM FILHO, POR QUE O FILHO DELE NÃO SOU EU?
(e) Um outro exemplo comum – e também errado – é alegarem que a Segunda Lei da Termodinâmica impossibilita a evolução, tendo em vista o aumento constante da entropia.
(f) FUTUYAMA, no Apêndice II de sua obra (referência 5) traz uma lista com 18 dos argumentos mais comuns utilizados pelos criacionistas, analisando-os quanto a sua validade.

Referências:
(1) DARWIN, Charles. A origem das espécies. Escala, 2009.
(2) DAWKINS, Richard. A grande história da evolução. Companhia das Letras, 2009.
(3) DAWKINS, Richard. O maior espetáculo da Terra. Companhia das Letras, 2009.
(4) ELDREDGE, Niles. O triunfo da evolução e a falência do criacionismo. FUNPEC-Editora, 2010.
(5) FUTUYAMA, Douglas. Biologia evolutiva. FUNPEC-Editora, 2009.
(6) MAYR, Ernst. Isto é biologia: a ciência do mundo vivo. Companhia das Letras, 2008.
(7) RIDLEY, Mark. Evolução. Artmed, 2008.

5 de dezembro de 2012

DOS LARES E DOS TERMOS


Fim de ano, muito trabalho, muitos problemas para resolver, então decidi abordar um tema mais ameno: etimologia. Quem nunca viu ou ouviu as expressões “lar, doce lar”, “retornar ao lar”, “termos do contrato”, entre outras, nas quais as palavras lar e termo estão presentes? LAR é uma palavra que evoca proteção, aconchego, família. TERMO traz a ideia de limite, marco divisório. A origem destas palavras remonta ao antigo mundo religioso greco-romano.

No antigo culto aos mortos, possivelmente uma evolução do totemismo primitivo(a)(b), os antepassados da família eram considerados deuses. Consistia tal culto, basicamente, em manter e cuidar do local de descanso final do parente falecido (a sepultura), no qual eram oferecidas libações, proferidas fórmulas sagradas e, em contrapartida, o deus familiar proporcionava saúde, fartura e proteção. Cabia ao chefe da família – o primogênito do sexo masculino – zelar pela manutenção do culto para, quando viesse a falecer e tornar-se ele também um deus, o seu filho desse continuidade aos ritos religiosos.

Como a família, por meio da religião, vinculava-se fortemente aos antepassados que “habitavam” a propriedade (pois ali estavam eles enterrados), era praticamente impossível as pessoas mudarem-se para outro local, pois se isso acontecesse (por exemplo, fossem feitos escravos), o culto cessaria (já que não havia como levar os deuses para outro lugar), e cessando o culto extinguia-se a família, resultando, assim, que não haveria quem desse continuidade às fórmulas sagradas, acarretando que os deuses não mais teriam quem os cultuasse e ficariam, assim, vagando desamparados(c).

Os LARES eram, pois, os deuses protetores das famílias, os seus antepassados. Inicialmente cultuados em sua sepultura, mais tarde sua presença passou a ser marcada por um altar(d) na entrada de cada habitação, cujo fogo sagrado deveria permanecer sempre aceso. Vejamos o que diz COULANGES (referência 2) sobre o lar: “O fogo do lar era, pois, a Providência da família. Seu culto era de fato bem simples. (...) exigia-se manter continuamente sobre o altar alguns carvões acesos porque, extinguindo-se o fogo, deixava de existir o deus.

Conforme a sociedade foi crescendo, sentiu-se a necessidade de delimitarem-se espaços. E assim surgiram os deuses TERMOS, que eram os guardiões dos limites das propriedades. Podiam ser representados por uma grande pedra ou árvore que marcava o fim da propriedade, e a partir de onde deveria ser respeitado um certo espaço entre uma propriedade e outra limítrofe, pois as duas não poderiam tocar-se, tendo em vista que cada uma possuía deuses (lares e termos) diferentes e, consequentemente, religiões diferentes.

Os deuses termos eram sempre muito respeitados, e também a eles – como aos lares – eram oferecidas libações. E quem ousasse remover um deus termo de seu local sagrado podia ser acusado de crime de impiedade. Também em relação ao termo, COULANGES (referência 2) tem algo a dizer-nos: “Uma vez o termo colocado segundo os ritos, não havia poder no mundo capaz de deslocá-lo. Devia ficar para sempre no mesmo lugar. (...) O deus termo guardava, de fato, os limites do campo, vigiando-o.” Este mesmo autor, ao citar uma lei etrusca, dá-nos uma ideia da seriedade com que o assunto era tratado: “Aquele que tocar ou deslocar o marco, será condenado pelos deuses; sua casa desaparecerá e sua raça se extinguirá; a sua terra não produzirá mais frutos; o granizo, a ferrugem, e os calores da canícula(e) destruirão suas colheitas; os membros do culposo cobrir-se-ão de úlceras e cairão por consumpção(f).

E assim, através dos séculos, chegaram-nos estas duas palavras. O LAR, que era o deus familiar (representado mais tarde pelo altar do fogo sagrado), converteu-se no local de moradia da família (abandonou-se o altar, mas manteve-se a ideia de local de reunião dos membros da família, local de proteção e de aconchego). E dos TERMOS, que eram os guardiões dos limites da propriedade, chegou-nos essa ideia de marco estabelecido, de limite a ser respeitado, a tal ponto do Direito fazer uso, por bom tempo, do brocardo “pacta sunt servanda” (os contratos devem ser cumpridos)(g).

Notas:
(a) HAINCHELIN (referência 4), ao tratar do tema [“O totemismo, culto dos animais ou das plantas, ligado à crença num parentesco entre o grupo humano e seu totem (...). Enterra-se o cadáver do totem com muitas cerimônias, costume que pode persistir inclusive quando (...) o totemismo já não existe: é o que sucedia com o lobo em Atenas (...).”] nos traz uma imagem muito similar do culto aos antepassados: o culto aos mortos, a crença no poder do parentesco, as cerimônias fúnebres, etc.
(b) Em CAMPBELL (referência 1) [“A vida animal é inteiramente transformada em vida humana, por meio da morte (...). O enigma do totem (a curiosa imagem dual, ao mesmo tempo animal e humana, da qual tanto o clã quanto as espécies animais do mesmo nome são considerados originários (...)) é perfeitamente interpretado por essa fórmula.”] temos também uma descrição muito próxima do culto aos antepassados: a morte como evento transformador de homem em deus (de animal em homem, no totemismo), a imagem dual humano/divino, etc.
(c) Talvez, nos dias atuais, pudéssemos chamá-los “almas penadas”.
(d) Este altar era chamado, na Grécia, de “bõmos”, “oschara” ou “héstia” (que mais tarde deu origem ao nome da deusa Vesta); já os latinos o chamavam “vestae”, “ara” ou “focus”.
(e) Canícula: período do ano em que Canícula (a estrela Sírio) encontra-se em conjunção com o Sol, no início de agosto, coincidindo com os grandes calores de verão (p.ext. calor muito forte) – Dic. Eletr. Houaiss, 2001.
(f) Consumpção: ato ou efeito de gastar-se até a destruição. Definhamento progressivo por doença – Dic. Eletr. Houaiss, 2001.
(g) O brocardo ainda é válido, mas não com a mesma força de antes.

Referências:
(1) CAMPBELL, Joseph. As máscaras de Deus: mitologia primitiva. Palas Athena, 2005.
(2) COULANGES, Fustel de. A cidade antiga. Martin Claret, 2002.
(3) DONINI, Ambrogio. Breve história das religiões. Civilização Brasileira, 1965.
(4) HAINCHELIN, Charles. As origens da religião. Fulgor, 1963.
(5) HACQUARD, Georges. Dicionário da mitologia grega e romana. Hachette, 1996.